Uma apresentação musical de uma banda de rock clássico se encerrava na televisão ao mesmo tempo em que os ponteiros de um antigo relógio de parede anunciavam que faltavam dois minutos para as sete horas da noite.
Décano, um jovem que havia passado mais de uma hora no sofá para descansar após um longo e atarefado dia, colocara a TV no canal de telenovelas que sua mãe Giovana gostava no mesmo momento em que esta vinha da cozinha em direção a um espaço que ficava atrás do sofá onde Décano ainda estava sentado.
Se colocando entre o sofá e um pequeno aparador que ficava próximo à porta de entrada da residência, Giovana tentou ajeitar os cabelos ruivos - quase sempre despenteados - do rapaz e disse enquanto dedicava uma rápida espiadela à novela:
- Filho, você pode colocar a mesa para o jantar hoje? – pediu ela, apressada, ajeitando os óculos redondos de hastes vermelhas sobre seus olhos esverdeados - O seu pai já está para chegar e você sabe como a correria na delegacia o faz chegar cheio de fome. Ele fica chateado quando eu não janto com ele, mas eu quero recolher as roupas do varal antes da janta.
- Claro mamãe. – respondeu Décano, levantando-se quase de imediato e se espreguiçando ao ficar de pé. Em seguida o rapaz colocou o boné de cor preta com uma faixa central amarela que estava descansando no braço do sofá e o girou para trás enquanto começava a se dirigir para a cozinha para atender o pedido feito por sua mãe.
Entretanto, logo que o rapaz chegou à cozinha Giovana percebeu que o filho havia colocado o boné.
- Tire esse boné, menino! - disse a mulher de meia idade, levemente alterada - Seu pai e eu já nos acostumamos a ver o seu cabelo desgrenhado. Você não precisa tentar esconder o seu desleixo com o cabelo de mim nem de seu pai.
- Isso não é verdade - respondeu o rapaz, tirando o boné ao mesmo tempo em que esboçava um sorriso - Eu tento pentear, mas sempre acaba ficando mais ou menos do mesmo jeito. O boné ajuda a assentar.
- É, mas garanto que uma tesoura seria uma alternativa perfeita para domar essa juba toda! - retrucou a mãe, também esboçando um sorriso - O seu cabelo já é volumoso e muito seco, mas você insiste em tentar deixá-lo crescer para depois deixá-lo abafado dentro desse boné! Tem cabelo que não se salva só com um pente, sabia?!
Os dois riram. Por mais que Décano Medina se sentisse um pouco incomodado com a insistência da mãe para que ele cortasse o cabelo e por mais que o rapaz não considerasse que seu cabelo era tão grande assim, ele sabia que a implicância de sua mãe era um motivo bobo para ficar irritado.
Entretanto, o que Giovana não sabia era que o rapaz tinha a autoestima um pouco baixa, pois ele se considerava muito magro e temia que as pessoas ficassem reparando nisso.
Quando criança o rapaz havia sofrido bullying à respeito de seu corpo esguio, mas com o passar dos anos Décano ficou alto como seu pai e começou a fazer pequenos treinos físicos que permitiram que ganhasse um pouco mais de massa muscular, porém não foi o suficiente para deixá-lo com músculos saltados, mas isso era algo que Décano não almejava desenvolver.
Entretanto, apesar de ter um corpo que algumas pessoas poderiam de fato considerar muito magro, Décano tinha os cabelos ruivos chamativos que herdara da família de sua mãe. Na opinião do jovem, felizmente a sobreposição do tom intenso de cobre de seus cabelos sobre sua pele clara rosada era bem atrativa e esse era o motivo dele deixar o cabelo crescer. Entretanto, por mais que Décano tentasse achar meios de domar a selvageria de sua juba encaracolada, ele não tinha o jeito e nem a paciência necessária para essa empreitada.
Apesar de não ser vaidoso, o rapaz sardento e de olhos cor de mel apenas tentava manter o seu visual descolado e sob seu controle como uma forma de compensar pela insegurança de achar que tinha um corpo magro demais.
Com exceção ao período em que era obrigado a usar o uniforme do colegial, Décano quase sempre andava com bermudas de tons escuros que cobriam os joelhos e grande parte de suas camisetas tinha estampas de bandas de rock. Outro acessório que o rapaz fazia questão de usar era o relógio inteligente que havia ganhado por ter sido considerado o melhor jogador em um campeonato de futebol na escola onde estudava.
Após lavar as mãos, Décano começou a colocar a mesa para o jantar enquanto Giovana recolhia as roupas do varal. Em seguida o rapaz secou os talheres que estavam em um escorredor e sua mãe retirou um assado do forno, colocando-o rapidamente na mesa quase derrubando a forma em cima de um dos dois pratos que já estavam corretamente posicionados na mesa.
Depois de mais alguns minutos de arrumação os dois se sentaram nas cadeiras em volta da mesa para esperar Eurides - o pai de Décano - chegar do trabalho. Pouco depois de se sentar, Giovana começou a falar novamente:
- E então filho, como está indo a escola? – perguntou, curiosa - Será que já colocaram o boletim no sistema da escola?
- Ainda não mãe, mas não deve demorar, afinal já estamos no final do ano... – respondeu Décano.
- Ai filho, eu sei que não preciso e nunca precisei me preocupar com isso, mas como este é o seu último ano no colegial, estou muito ansiosa! – disse a mãe, aflita - Não tem como você ver rapidinho aí no seu relógio? Você fala tanto dessa coisa, mas você sabe que a mamãe não entende nada disso! Mal me acostumei até com celulares!
- Tá bom mãe, calma - disse Décano, mexendo em algumas funções de seu relógio de pulso inteligente - Ah, olha, colocaram o boletim no sistema hoje pela manhã. Vou abrir em modo de projeção.
Assim, segundos após o jovem apertar um pequeno botão na tela do relógio inteligente, uma pequena holoprojeção surgiu do relógio, fazendo com que um painel efêmero aparecesse no espaço acima do centro da mesa. O painel luminoso e de alta resolução mostrava as diferentes matérias escolares do ano, as notas que Décano havia tirado nas provas e alguns comentários de seus professores a respeito de seu desempenho.
A holoprojeção já havia passado a ser relativamente comum para as pessoas, pois o ano era 2041 e em seus dezessete anos de vida Décano já estava mais do que acostumado com a tecnologia. Entretanto Giovana nunca conseguira se adaptar àquilo, por mais que tentasse.
- Eu sempre me espanto com esse tipo de coisa! - disse Giovana, admirada com a holoprojeção, mas pensativa ao analisar as notas que o rapaz havia tirado.
- E olha que o meu relógio nem é dos mais modernos - afirmou o rapaz, apesar de gostar do acessório que tinha. Em seguida o rapaz desligou o modo de holoprojeção ao ver que sua mãe terminara de ver as suas notas - Só não entendo o motivo de você e o papai não quererem comprar uma televisão que tenha holoprojeção também. Seria tão legal ver as bandas tocando no meio da nossa sala, você não acha?
- Ai Décano, por mais que eu ache esse tipo de coisa algo fantástico, na realidade eu não me importo muito com isso e seu pai também não. Sem contar que irei usar o pouco dinheiro que sobrou esse mês para fazer uma festinha de aniversário para comemorar os oitenta anos da vovó com todas as amigas dela! - disse Giovana, que claramente havia começado a pensar naquilo havia semanas - Eu não reclamaria se você juntasse dinheiro para comprar uma televisão dessas para o seu quarto, só que infelizmente no momento seu pai e eu não temos condições de gastar dinheiro com isso.
- Eu entendo mamãe, não precisa se preocupar – disse Décano, calmamente – Na realidade eu falei brincando só para ver a sua reação, pois eu nem estou em um momento de ficar me distraindo muito, pois aqueles exames da polícia estão chegando, finalmente.
Décano deixou transparecer uma preocupação ao dizer isso, pois ele estava se referindo aos exames e testes que faria para poder ingressar como aprendiz da força policial do departamento em que seu pai trabalhava.
- O papai tem me ajudado muito com o estudo específico desde o começo do ano, por isso, por mais difíceis que os exames venham a ser, me sinto preparado para realizá-los - disse o rapaz, tentando se acalmar - Só espero conseguir não ficar muito ansioso a ponto do nervosismo me atrapalhar quando eu for fazer os testes.
- Ah, não se preocupe, meu filho. Tenho certeza de que você irá se sair muito bem! – completou Giovana, esperançosa – Seu pai e eu sabemos o quanto os adolescentes andam desleixados nos dias de hoje e nós morríamos de preocupação que você tomasse esse caminho. Mas você não tem ideia do quanto seu pai e eu nos orgulhamos de você hoje, filho!
- E eu darei o meu melhor na polícia mamãe! Pode apostar... – disse Décano, determinado e tranquilo.
Apesar de não poder ser considerada como uma mulher delicada por conta de seus trejeitos pessoais ligeiramente brutos, Giovana Medina era generosa e, quando possível, sempre tentava ajudar os amigos e parentes que lhe pediam auxílio - seja financeiro, alimentar ou emocional. Décano e Eurides eram pessoas igualmente boas, mas os três sabiam que em muitas vezes era Giovana que colocava a família nos trilhos quando alguma coisa não ia bem, pois parecia que ela sempre sentia o que devia ser feito para que as coisas ficassem bem em tempos difíceis.
Apesar de estar um pouco acima de seu peso ideal e já estar na casa dos cinquenta anos, a dona de casa de estatura média transbordava saúde e era muito mais enérgica do que muitas pessoas de sua faixa de idade. Assim como Décano, Giovana também tinha cabelo ruivo - apesar de não ser mais de uma cor tão intensa quanto a do filho - e seus fios de cabelo também formavam um bom contraste com sua pele de cor levemente bronzeada por conta do sol.
Em paralelo ao trabalho de casa, Giovana também lavava e passava roupas para alguns vizinhos para ajudar no orçamento da casa. Quando possível, a mãe de Décano também tomava conta de suas duas sobrinhas, primas de Décano e filhas de sua irmã mais nova, Vera. Giovana nunca cobrava nada de sua irmã pelo favor, mas esta sempre insistia em lhe dar um dinheirinho pelo serviço de babá.
Giovana se orgulhava tanto de seu filho que frequentemente uma lágrima de felicidade acabava descendo por seu rosto toda vez em que se perdia em seus pensamentos ao parar para refletir sobre o grande desenvolvimento pessoal que seu filho tivera nos últimos anos e estava ansiosa para ver como seria dali para frente.
Quanto a seu marido, a dona de casa se preocupava com os perigos que envolviam o trabalho de Eurides e havia muito tempo que começara a sentir a mesma preocupação por Décano, pois afinal o jovem estava prestes a seguir a mesma carreira de seu pai. Entretanto, como eles moravam em uma cidade que tinha um baixo índice de violência, ela conseguia lidar com as suas preocupações sem interferir nas escolhas dos dois homens aos quais dedicava todo o seu amor.
- A propósito mamãe, eu me esqueci de lhe falar: hoje eu não irei jantar com vocês – afirmou o rapaz, apontando para os dois pratos na mesa – Eu combinei de me encontrar com o pessoal no Parque das Macieiras agora à noite. Quando voltar, eu janto.
- Ah sim, eu já imagino o motivo – disse Giovana, não parecendo estar surpresa – É por causa do fechamento do parque na semana que vem, não é?
- É isso mesmo – respondeu Décano, com uma leve tristeza pelo fato do principal parque florestal daquela região estar prestes a ser interditado – Precisamos aproveitar enquanto o parque ainda está aberto para visitação. Não sabemos nem se um dia ele irá reabrir...
- Entendi filho. Você pode ir sim, pois já que vi que você não está com problemas com os estudos... – compactuou Giovana mesmo sabendo que estavam em uma terça-feira e que no dia seguinte Décano teria aula pela manhã – Aliás, é até bom que você aproveite bastante o parque mesmo, pois daqui para frente você terá que se dedicar cada vez mais aos seus estudos.
- Sim, mamãe – concordou o jovem – Mas eu ainda não consigo acreditar que um parque público voltado ao lazer irá fechar assim de repente e sem razão nenhuma apenas um ano após ter sido reformado. Eu não entendo.
- Hm... uma amiga minha lá da igreja disse que o parque está sendo fechado por questões de preservação ambiental, mas isso é estranho porque, aparentemente, não há nada naquela área que pareça colocar o parque em risco – comentou a dona de casa, pensativa – Pelo menos o zelador do parque colocou o aviso no portão de entrada com antecedência e o ampliou o horário de visitas também. Você viu como o zelador está fechando tarde os portões? Até duas semanas atrás os portões eram fechados pouco antes do pôr do sol...
Décano concordou com a mãe e os dois ficaram sem conversar por alguns minutos, prestando atenção ao som da telenovela que estava passando na televião da sala de estar.
Os Medinas eram uma família de classe média baixa que vivia tranquilamente no bairro menos populoso de Campos Serenos, uma cidade paulista cheia de áreas verdes. Não era uma cidade grande, mas a maioria de suas ruas era asfaltada e a cidade possuía diferentes pontos de encontro para pessoas de todas as idades, apesar de não haver nenhum ponto turístico realmente interessante a ponto de atrair turistas de outros municípios.
A casa em que Décano morava com os pais tinha condições suficientes para acomodar aquela família de três pessoas com conforto e era o fruto vindo de uma trajetória de muito suor de Eurides e Giovana.
Era um sobrado na esquina de uma pequena ladeira que, apesar de não possuir muito espaço de terreno, tinha condições suficientes para acomodar aquela família de três pessoas com conforto:
Grande parte do muro externo da residência - cuja curvatura cobria toda a lateral da casa que corria adjacente à pequena ladeira e parte da frente da casa - fora coberto pequenas telhas marrons e forrado com uma massa acrílica decorada com textura e pintada com um tom bordô intenso que fazia um agradável contraste com os paredes de tijolos marrons do pequeno sobrado.
Era uma casa sem garagem cuja porta de entrada envernizada era acompanhada por um único degrau localizado abaixo da mesma e uma pequena cobertura feita com as mesmas telhas marrons que cobriam os muros laterais. A porta de entrada dava acesso à um pequeno jardim fechado que consistia em, basicamente, dois pequenos canteiros emoldurados por pisos e azulejos decorados com pequenas folhas azuis.
Através de pequenos degraus, o jardim dava acesso a uma pequena a área de azulejos brancos onde havia duas plantas bem cuidadas sendo que uma delas era uma samambaia que estava suspensa por um suporte de parede à direita de quem subisse os degraus. À frente dos degraus ficava a larga e castigada porta da sala de estar perfeitamente alinhada com a porta de entrada do muro externo.
Ao lado esquerdo da porta da sala havia uma pequena janela através da qual alguém que estivesse dentro da sala de estar teoricamente poderia ver um pouco do jardim, entretanto a samambaia suspensa que Giovana mantinha na pequena área cobria quase todo o campo de visão fornecido pela janela.
A pequena área de entrada dava acesso direto à sala de estar e, se porventura a porta da sala e a porta de entrada da residência estivessem abertas ao mesmo tempo, alguém que passasse pela calçada olhando para a casa poderia ver boa parte da sala de estar, fato que incomodava um pouco Giovana.
A sala de estar forrada com um piso frio de mármore cinza barato não tinha um espaço muito grande, mas cada centímetro do cômodo fora muito bem aproveitado por Giovana. Sejam os sofás, a mesinha, a estante, o tapete, a televisão ou os inúmeros porta retratos, não havia nada ali que não tivesse sido cuidadosamente organizado pela dona de casa. Alguns quadros de paisagens dispostos nas paredes de tom pastel traziam um aspecto de leveza para a sala.
Fora os móveis, na sala havia uma janela larga e alta ao lado direito de quem entrasse pela porta de entrada e na parede oposta à da porta havia um corredor que levava para a cozinha, que também não era um cômodo muito grande.
Os pequenos azulejos da cozinha tinham uma cor marrom claro e o piso era de um material semelhante ao da sala, mas tinha um tom mais claro. Os armários distribuídos em volta da mesa eram predominantemente esverdeados e, por não fazerem parte de um mesmo conjunto planejado, apresentavam diferentes tons de verde, mas contrastavam bem com a cor acinzentada da geladeira. Em uma das paredes da cozinha havia uma porta de madeira que dava acesso a uma pequena dispensa que ficava entre a sala de estar e a cozinha.
Na cozinha havia também uma porta de metal pouco resistente pintado de branco que dava acesso à um minúsculo quintal dos fundos - que compartilhava dos mesmos pisos e azulejos do jardim - onde Giovana aproveitava a falta de cobertura para estender as roupas em dias de sol que eram lavadas em uma pequena área coberta que servia como área de serviço. Fora essas áreas, os únicos cômodos da casa ficavam no topo de uma velha escada em L que conectava um dos lados do pequeno corredor da parte de baixo da casa a dois dormitórios bem organizados e ao banheiro.
A família Medina vivia em uma casa modesta e não tinha carro. Entretanto, intimamente, cada integrante da família sentia que aquela pequena residência era mais do que o suficiente para eles.
Depois de dez minutos da mesa ter sido posta, um barulho de um molho de chaves ecoou pelos cômodos quando um senhor alto e visivelmente forte fechou a porta de entrada da casa.
Eurides Medina era um senhor calvo de cinquenta e oito anos de idade que tinha a pele clara como a de seu filho, mas o homem, que trazia em seu rosto um bigode largo e curto no rosto em fios castanhos, era mais bronzeado e não era tão esguio, pois seus quase noventa quilos de puro músculo eram distribuídos em um metro e oitenta de altura.
Décano confessadamente tinha um pouco de inveja do porte físico do pai. Entretanto o rapaz sabia que aquele nada mais era do que o era resultado de muito treino e mais de três décadas de trabalho intenso na força policial - algo que também trazia esperança ao jovem em relação ao próprio corpo.
Entretanto, por algum motivo, diferentemente de como fazia todos os dias, Eurides não viera para casa trajando a sua farda. Ao invés disso o homem havia colocado o seu uniforme em uma larga mochila verde caqui que carregava em suas costas e havia voltado para casa trajando roupas pouco formais que consistiam basicamente em uma camisa azul de manga curta com botões, uma calça jeans cinza e botas de couro já gastas.
Fora isso, a única coisa que trazia consigo era um maço de cigarros quase inteiro em um dos bolsos da camisa que estava acompanhado por óculos redondos pendurados no bolso por uma das hastes escuras que começaram a balançar quando o trabalhador subiu os degraus da pequena área onde ficava a samambaia.
Além de não estar utilizando a sua tradicional farda de policial, outra coisa estranha em Eurides naquele dia era a sua expressão de desânimo e preocupação que, por mais que tivesse tentado disfarçar, Giovana e Décano foram capazes de perceber com facilidade assim que o pai de família entrou na sala de estar por conta dos olhos cor de mel marejados em um homem que nunca chorava.
Temendo estar transparecendo o que sentia, Eurides esboçou um leve sorriso sincero ao ver Giovana e Décano olhando para ele. A esposa não pôde deixar de perceber que algo estava errado, mas a primeira coisa que fez foi receber o marido com um beijo no rosto que foi seguido por um abraço do adolescente. O policial por sua vez abraçou-os com força, mas, com um claro tom de preocupação, disse:
- Tive um dia difícil... – comentou, mas Eurides fez o possível para não preocupar muito os outros membros da família – Está tudo bem por aqui?
- Sim, querido – respondeu Giovana, que começou a caminhar em direção à cozinha junto ao marido, com o braço direito ao redor de seu tronco – acabamos de colocar o jantar na mesa. Está com fome?
- Estou sim, com muita fome! Mas antes me deixe descansar um pouco no sofá – disse Eurides tentando disfarçar o que sentia por dentro enquanto, exausto, retirava as botas de couro – Estou precisando relaxar... houve uma grande confusão no departamento hoje.
- Por quê? O que houve? – perguntou Décano, que não conseguia imaginar o que teria causado tamanha preocupação em seu pai.
- Ah meu filho... não sei se eu devo contar isso à vocês. – afirmou Eurides, mas ao ver que não conseguiria mudar de assunto sem deixar sua esposa e filho preocupados, continuou – Bom, acontece que nós recebemos uma visita de um pelotão do exército hoje.
Giovana e Décano ficaram surpresos com a afirmação do policial, pois aquilo nunca havia acontecido. Mas antes que pudessem perguntar a razão, Eurides continuou:
- Foi muito estranho, pois por mais que perguntássemos o motivo, os militares não nos permitiram saber dos detalhes da operação que estão fazendo – comentou o pai de família, tentando se lembrar de tudo o que aconteceu durante o dia – Basicamente a única coisa que nos disseram foi que a partir de hoje eles precisarão utilizar parte da delegacia em obediência à uma ordem dada por um órgão de autoridade superior.
- Mas eles simplesmente chegaram e disseram que o departamento deveria ceder às exigências? – perguntou Giovana, pasma.
- Sim, em resumo, foi exatamente isso que aconteceu. O que mais me incomodou foi que o comandante do pelotão nos tratou como lixo – disse Eurides, aflito - Mas nós policiais sabemos que existe uma hierarquia de autoridade e que se um órgão militar superior requerer esse tipo de apoio, nós temos que acatar as ordens.
Giovana estava pensativa e preocupada com o relato do marido, tentando entender o ocorrido. Décano prestou atenção à todas as palavras do pai, mas o rapaz percebeu que ainda havia alguma coisa muito séria que ele estava escondendo.
“Ele não estaria tão aflito pelo fato da polícia ter que dividir o espaço das instalações com os militares e abuso de poder não me parece ser algo que o afetaria tanto” – pensou o jovem que sabia muito bem que seu pai era forte tanto fisicamente quanto emocionalmente – “Tem alguma coisa a mais acontecendo...”
- Papai... o que mais aconteceu? – perguntou calmamente o rapaz, perplexo com a situação – Desculpe, mas sei que o senhor ainda está escondendo algo...
Giovana ouviu as palavras do filho sem entender. Em seguida os dois olharam para Eurides, que abaixou a cabeça. Alguns momentos depois o pai de família finalmente fez rolar algumas lágrimas e começara a falar:
- Depois de mais de trinta anos, quase que eu fui despedido hoje – afirmou o homem, cabisbaixo, olhando em direção ao chão, sentindo vergonha por causa do choro – Alguns policiais do departamento foram despedidos por questionarem demais as ordens dos militares. Dois policiais foram presos por desacato agravado.
- Mas querido... – começou Giovana, com os olhos marejados ao ver o marido daquele jeito. Porém Eurides recomeçou a falar antes que a esposa pudesse continuar a falar.
- Eu estava junto com os policiais afastados, só que não discuti diretamente com os militares e é só por isso que pude manter o meu posto por enquanto... – continuou o policial, tenso – Agora estou sob avaliação... eu terei que ter muito cuidado de agora em diante. O que será de nós se eu perder o emprego?
Eurides estava claramente abalado e tanto Giovana quanto Décano o abraçaram, tentando acalmá-lo. Passados alguns momentos de silêncio, a matriarca começou a consolar o marido:
- Querido, sei como você ama o que faz e sei muito bem que se você se viu no direito de entender melhor as ordens dos militares, foi porque você realmente achou que alguma coisa estava errada – disse a dona de casa. Em seguida Giovana levantou o rosto do marido para olhá-lo de frente e continuou – Mas saiba que, não importando o que aconteça, com ou sem demissão, nós três iremos passar juntos por qualquer dificuldade que apareça, entendeu?
Eurides, deixando escapar um sorriso de agradecimento à esposa, deixou rolar as últimas lágrimas que estavam carregadas em seus olhos.
- Obrigado... obrigado! – disse, com o olhar vagando entre a esposa e o filho, abraçando-os no processo e visivelmente feliz ao perceber que sempre poderia contar com o apoio de sua família.
Tanto a esposa quanto o filho sorriram para Eurides e terminaram o abraço com um breve aperto mais forte. Em seguida Giovana chamou o marido para jantar.
Ao ver seu pai naquela situação, Décano decidiu que ficaria em casa para o caso de seus pais precisarem de alguma coisa. Porém, quando Giovana percebeu a decisão do rapaz, ela disse ao marido:
- O Décano está indo ao Parque das Macieiras para se encontrar com alguns amigos. Eles querem aproveitar enquanto o parque ainda está aberto – disse ela, chamando a atenção do marido e do filho – Eu disse a ele que não tem problema.
Eurides, que também não era muito restritivo quanto aos passeios de Décano por saber que ele era um bom rapaz, resolveu não estragar os planos do filho e simplesmente disse a ele:
- Tome cuidado na hora de voltar, pois já estará bem tarde. Está bem filho?
Décano, sorrindo ao ver a atitude de seus pais, apenas disse:
- Vejo vocês mais tarde!